A prescrição da pretensão punitiva do TCU

No recentíssimo dia 23 de março de 2022, o Plenário do Tribunal de Contas da União – TCU examinou o processo nº. TC 036.683/2018-3 e, de forma unânime, proferiu o Acórdão nº. 595/2022, decidindo, dentre outras questões, que o prazo prescricional da pretensão punitiva do TCU é de 10 anos, conforme estabelecido no art. 205 do Código Civil brasileiro.

A referência a esse Acórdão tem como premissa, apenas, os critérios cronológico — a data mais recente que se encontrou quando da redação deste texto — e por ter sido prolatado pelo Plenário, com a aquiescência, pois, da integralidade dos Ministros da Corte de Contas brasileira.

Importa notar, no caso, que, inobstante tenha o Supremo Tribunal Federal — também o Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais Regionais Federais do país — já examinado a questão prescricional — em certa medida até pela sistemática da repercussão geral — e afastado a aplicação da prescrição decenal prevista no Código Civil e decidido pela aplicação da Lei 9.873/1999, ainda hoje o TCU tem insistido no processamento de feitos condenatórios inviáveis, cujo transcurso de tempo já superou os prazos preclusivos previstos na Lei de regência.

É pertinente, assim, tecer algumas considerações acerca do não acatamento pelo TCU do entendimento assente no âmbito do STF.

O entendimento formado pelo STF

O Supremo Tribunal Federal julgou o RE 636.886 sob a sistemática da repercussão geral (Tema 899) e, embora não cuide exatamente da prescrição da pretensão punitiva do TCU, apontou que “[a] pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos reconhecida em acórdão de Tribunal de Contas prescreve na forma da Lei 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal).”

Examinado o inteiro teor do acórdão proferido, há, em excertos do voto-vista proferido pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, abordagem no sentido de que a questão relativa à prescrição da pretensão punitiva do Tribunal de Contas da União é regida pela Lei 9.873/1999. Vale citar as palavras constantes do voto então proferido:

O que há, do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial, no âmbito federal, é a adoção supletiva do art. 1º da Lei 9.873/1999 (que dispõe sobre a “prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta”), verbis in verbis:

(…)

Considerando que a atividade de controle externo, a cargo do Poder Legislativo e auxiliado pelo Tribunal de Contas, é exercida, mutatis mutandis, como poder de polícia administrativa lato sensu, cujo objeto é agir preventiva ou repressivamente em face da ocorrência de ilícito que possa causar ou cause prejuízo ao erário, entendo aplicável o prazo quinquenal punitivo para os casos de ressarcimento aos cofres públicos, salvo em se tratando de fato que também constitua crime, ocasião em que a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal.

Textualmente, indica-se que a Lei 9.873/1999 dispõe sobre a “prescrição para o exercício da ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta” e, assim, as suas disposições são aplicadas ao TCU, considerando a sua atividade de controle externo como o exercício de um poder de polícia administrativa com o objetivo de prevenir e reprimir a ocorrência de ilícitos que gerem ou que possam gerar danos ao erário.

A partir de então, sempre que demandado a decidir a respeito da matéria, o STF tem afirmado que, ao TCU, aplica-se o regramento prescricional da Lei 9.873/1999 — prazo de 5 anos para o exercício da pretensão (art. 1º, caput, da Lei); prazo de 3 anos à prescrição intercorrente (§ 1º do art. 1º do Diploma) —, não o prazo adotado pelo TCU — 10 anos, do art. 205 do CC — para o exercício da pretensão punitiva. Assim o fez o STF, e.g., taxativamente, quando do julgamento do MS 35.940, cujo primeiro tópico da ementa do acórdão foi assim redigido:

A prescrição da pretensão punitiva do TCU é regulada pela Lei 9.873/1999, descabendo a aplicação do prazo decenal previsto na legislação civil (art. 205 do Código Civil). Ao revés, incide o prazo quinquenal previsto na Lei 9.873/1999 (MS 32201, Rel. Min. Roberto Barroso, PRIMEIRA TURMA, DJe 7/8/2017; MS 35.512-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, SEGUNDA TURMA, DJe 21/6/2019). (MS 35940, STF, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 16.6.2020). (Negritou-se.)

É necessário apontar que, expressamente, nesse acórdão, o STF tratou da “prescrição da pretensão punitiva do TCU”, isto é, do exercício efetivo da função repressiva administrativa que é conferida ao Tribunal de Contas contra os ilícitos que trazem danos ao erário. Não parece haver dúvida, pois, que a jurisprudência do STF se firmou no sentido de que, relativamente ao prazo prescricional da pretensão punitiva do TCU, aplicam-se os ditames da Lei 9.873/1999, não sendo aplicável o Código Civil brasileiro.

Na mesma linha do STF, a propósito, o Superior Tribunal de Justiça, por ambas as Turmas que cuidam de direito público, também firmou entendimento uníssono acerca da matéria: “[a] jurisprudência desse Sodalício orienta pela aplicação, por analogia, do prazo quinquenal, por analogia aos arts. 1º do Decreto 20.910/32 e 1º da Lei 9.873/99 na hipótese de atuação do Tribunal de Contas da União. Precedentes do STJ.” (AgInt no REsp 1.412.588-RN, STJ, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 15.12.2016).

Nos contornos da jurisprudência construída no STF e no STJ, portanto, não há dúvida de que o Poder Judiciário, ao ser chamado a atuar em demanda que discuta a regência do prazo prescricional da pretensão punitiva do TCU, decidirá pela aplicabilidade da Lei 9.873/1999.

O entendimento mantido pelo TCU

O TCU, há tempos, orienta-se pelo prazo de 10 anos para a instauração de processo de tomada de contas especial, contados a partir da data provável de ocorrência do dano (art. 6º, II, da Instrução Normativa nº. 71, de 28.11.2012, daquele mesmo Tribunal de Contas).

 Em 2016, já ocorrendo as decisões judiciais que apontavam para a existência de prescrição quinquenal para o exercício da função punitiva do TCU, o Plenário da Corte de Contas Federal examinou incidente de uniformização de jurisprudência (Acórdão TCU 1441/2016-Plenário, Processo TC 030.926/2015-7) para cuidar de uma miríade de questões relacionadas à prescrição — prazos, data de início, suspensões e interrupções, dentre outros — e, no que importa a este texto, firmou, por maioria, o entendimento de que, relativamente à prescrição da pretensão punitiva do Tribunal, aplica-se o Código Civil, que em seu art. 205 estatui a ocorrência de prescrição em 10 anos e, no art. 189, prevê que o início do prazo é a data em que a irregularidade sancionada ocorreu.

 Prevaleceu o entendimento de que, não havendo norma expressa no ordenamento brasileiro a respeito da prescrição da pretensão punitiva do TCU — dado o silêncio da Lei 8.443/1992 —, aplicar-se-ia, automaticamente, a “regra geral de prescrição” insculpida no Código Civil. Em poucas palavras, a raciocínio prevalecente no âmbito do TCU é: não havendo lei específica, aplica-se a regra geral prevista no CC, mesmo sendo ela direcionada ao regramento de relações de natureza privada.

Desde então, o TCU tem aplicado esse entendimento (já declarado ilegal pelo Poder Judiciário) aos casos que lhe são submetidos, mesmo declarando absoluta ciência da jurisprudência formatada pelo Supremo Tribunal Federal. É o que se extrai do julgado recente, citado na introdução deste ensaio, que aqui merece transcrição:

Inicialmente, rejeito a preliminar suscitada pela defesa de prescrição quinquenal da pretensão punitiva com base na Lei 8.873/1999.

Não obstante o Supremo Tribunal Federal tenha adotado prazo de prescrição quinquenal previsto na Lei 9.873/1999 em sucessivos julgamentos de casos concretos, tendo como leading case o MS 32.201/DF, não tem sido essa a orientação perfilhada por esta Corte de Contas.

Ao decidir incidente de uniformização jurisprudencial, o Tribunal, por meio do Acórdão 1441/2016-Plenário, adotou o prazo decenal de prescrição estabelecido no artigo 205 do Código Civil, contado a partir da data do fato impugnado, interrompido pelo ato que ordenar a citação, a audiência ou a oitiva das partes. (Acórdão nº. 595/2022 – TCU – Plenário, processo nº. TC 036.683/2018-3)

 O TCU não nega conhecer, portanto, nem o acórdão proferido no referenciado leading case MS 32.201/DF, nem o julgamento sob a sistemática da repercussão geral do RE 638.886 (Tema 899). Admite, expressamente, a existência da jurisprudência do Poder Judiciário, mas insiste na manutenção do seu entendimento.

Bem a propósito, no bojo do processo TC 027.624/2018-8, foi anexado trabalho elaborado pela Secretaria de Recursos do TCU – Serur que bem demonstra os efeitos da Tema 899 do STF sobre o processamento de feitos administrativos no âmbito do Tribunal de Contas.   

Conforme destacado no Acórdão TCU 2.851/2020-Plenário, a Serur aponta, precisamente, que o julgamento levado a efeito pelo STF “afeta a ação de ressarcimento como um todo, abrangendo não só a execução, mas também a pretensão condenatória”. Em palavras escritas no citado Acórdão, “a conclusão de que a pretensão de ressarcimento é prescritível foi estabelecida de forma categórica” (alínea “b” do § 13 do Acórdão).

O mesmo Acórdão TCU 2.851/2020-Plenário, na alínea “d” do § 13, aponta a confirmação da Serur no sentido de que, “por adotar balizas usuais no âmbito do direito público, prevê causas de interrupção em tudo compatível com o processo de controle externo”, a Lei 9.873/1999 “já vem sendo utilizada pelo STF para limitar o exercício da pretensão punitiva pelo TCU”. E, conforme bem colocado no Acórdão, a Serur arremata: “Assim, até que sobrevenha norma específica, entende-se que a prescrição das medidas de ressarcimento a cargo do tribunal de contas deve observar o regime Lei 9.873/1999.”

De se destacar, também, o fundamentado voto proferido pelo Ministro Benjamin Zymler, então relator do Processo TC 030.926/2015-7, que ficou vencido no Acórdão 1441/2016-Plenário. Nas suas razões, o Ministro Zymler aponta, com precisão, a inaplicabilidade do CC em relação à matéria — mostrando as diferenças de pressupostos orientadores das relações de civis e as relações administrativas — para marcar sua posição no seguinte sentido:

33.  Vejo que o prazo de cinco anos é paradigmático para poder público, como pode também ser observado na Lei 9.784/1999, que fixa em 5 anos o prazo decadencial da administração para anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, e como se deduz da própria Lei Orgânica do TCU, que estabelece o mesmo prazo para o Ministério Público apresentar de ofício recurso (de revisão) contra as decisões do Tribunal.

Inobstante existam tantos substratos que apontam para a inaplicabilidade do CC e a incidência dos preceitos da Lei 9.784/1999 em regência das questões prescricionais no exercício da função punitiva do TCU — especialmente a jurisprudência firma formatada pelo Poder Judiciário —, o Tribunal de Contas da União tem insistido na contagem de 10 anos para a prescrição.

Conclusão

A estipulação, no ordenamento jurídico pátrio, de prazos máximos para que se possa agir em defesa de um direito decorre, diretamente, da concretização dos princípios constitucionais do devido processo legal e da segurança jurídica.

Vulnera esses princípios frontalmente a instauração de processos administrativos sancionadores anos e anos depois de os fatos terem sido realizados. Vale dizer, depois de tanto tempo transcorrido, não há como serem exercidos o necessário contraditório e o essencial direito à ampla defesa em relação aos fatos. Traz absoluta insegurança aos que poderão ser sancionados a indefinição quanto ao prazo para que se discuta a validade da relação havida.

Não se trata de privilegiar a impunidade ou a ilegalidade (até porquê, quando o ato configurar crime, o prazo prescricional tem outro regimento), mas de defesa do direito de o investigado não ser surpreendido por algo tão antigo e, mais ainda, se alguma irregularidade existir, para que possa exercitar com plenitude os direitos decorrentes do princípio do devido processo legal.

Com essa necessária compreensão do sistema jurídico que cuida da prescrição e, especialmente, com o importante acatamento da jurisprudência formatada pelos colendos STF e STJ a respeito da matéria, o TCU há que reconhecer a aplicação da Lei 9.873/1999 como regente da matéria prescricional em relação às suas pretensões punitivas.

Persistir no entendimento de aplicação do art. 205 do CC para o regramento do prazo prescricional é dispender bons recursos públicos para a obtenção de resultados administrativos inválidos, sob o ponto de vista jurídico, que serão revistos pelo Poder Judiciário, com a imposição de mais custos à Administração (direitos e indiretos). De outra banda, acolher o entendimento assente no Poder Judiciário, ao fim e ao cabo, é medida que atende ao princípio constitucional da economicidade e da eficiência, dois sustentáculos da Administração Pública que vêm à balha com elevada frequência nos julgamentos desse colendo TCU.

Bem a propósito, em seu sítio na internet, quando trata das suas “competências”, o TCU apresenta-se como “órgão de controle externo do governo federal e auxilia o Congresso Nacional na missão de acompanhar a execução orçamentária e financeira do país” e que “tem como meta ser referência na promoção de uma Administração Pública efetiva, ética, ágil e responsável”. Adicionalmente, apresenta-se como “responsável pela fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos órgãos e entidades públicas do país quanto à legalidade, legitimidade e economicidade.” (Os negritos não constam do original.)

Insistir no exercício de pretensões condenatórias prescritas é consumir recursos (humanos, financeiros, técnicos, dentre outros) da Administração e do particular indevidamente. Mais ainda, sendo certo de que a questão desaguará no Poder Judiciário — que acolherá a demanda, dada a conformidade com a sua jurisprudência —, configura-se desperdício de recursos públicos a continuidade de processos sancionatórios inválidos ou, quando menos, ineficazes.

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